SOBRE A IDEOLOGIA DE GÊNERO E JUDITH BUTLER

buttler

Judith Butler

Quando me questionam a respeito da posição sobre a ideologia de gênero, sinto um forte cheiro de ansiedade no ar. Alguns discordam com veemência, outros só concordam por medo de ser julgados como “ultrapassados”, mas têm medo do caminho que a humanidade segue, e os restantes realmente concordam.

Como psicóloga estou sempre aberta a novos conceitos. Entretanto, não posso como profissional me apegar a modismos e marketings sem primeiro entender como simplificar um conceito tão complexo como a ideologia de gênero, a ponto de se cogitar sua inclusão no Plano Nacional de Educação brasileira.

Estudos e pesquisas neurocientíficas descobriram que no córtex pré-frontal, uma região chamada córtex orbitofrontal (localizada atrás dos olhos) é a última a amadurecer; somente a partir da adolescência, e é ela que promove a capacidade de usar emoções para nortear decisões. Isso é fato.

Ideologia de gênero, por sua vez, é uma crença (veja bem: crença) segundo a qual os dois sexos, masculino e feminino, são considerados construções culturais e sociais. Adeptos  da “ideologia de gênero” afirmam que ninguém nasce homem ou mulher, mas que cada indivíduo deve construir sua própria identidade, isto é, decidir seu gênero, a partir da infância e ao longo da vida (lembrando que é diferente da homossexualidade, cujos tabus já foram ‘em partes’ quebrados e que cabe a todos desmistificar a ideia de “doença” e alertar quanto a preconceitos).

Retomando à ideologia de gênero propriamente dita e emergindo a “maiêutica socrática”, esse tema provoca mais perguntas do que respostas. Quando eu me proponho a sustentar uma teoria, tenho que me remeter a minhas habilidades profissionais, certo? Judith Butler é basicamente uma filósofa, correto? Quais conhecimentos específicos ela dispõe para corroborar uma teoria que envolve não somente aspectos filosóficos, mas também aspectos médicos e psicológicos, como a ideologia de gênero? Quando Butler afirma que “o gênero é uma construção cultural; por isso não é nem resultado causal do sexo, nem tão aparentemente fixo como o sexo”, quantos estudos com discussões e resultados que envolvam os vários profissionais foram feitos a respeito para que ela chegasse a essa idéia? Uma criança de quatro ou cinco anos de idade teria a capacidade cognitiva ou maturidade suficiente para decidir seu próprio sexo?

Pelo que pesquisei, Butler está embasada em autores relacionados com o giro linguístico e com a fenomenologia. O registro mais antigo que se tem dessa expressão tem apenas 13 anos. Está na obra “Who Stole Feminism?” (em Português, Quem roubou o feminismo?), de 1994, escrita pela norte-americana Christina Hoff Sommers, doutora em Filosofia que se considera uma “feminista da equidade”, mas não uma “feminista de gênero”.

Sou psicóloga e posso supostamente não concordar com o complexo de Édipo proposto por Freud, concordar com os arquétipos de Jung, aceitar as couraças de Reich, discordar do comportamentalismo de Skinner, ter como modelo Winnicot ou outros psicanalistas. Posso me identificar com uma ideia, ou várias delas, mas não posso fazer de uma só ideia uma teoria absoluta, a ponto de generalizá-la e aspirar a alteração de aspectos do gênero humano e respectiva educação.

Portanto, particularmente, como profissional, dou a Judith e seus seguidores o direito de estabelecer suas ideias, divulgá-las, mas enquanto a ideologia de gênero estiver  no patamar de uma teoria (ou crença) limitada a um conhecimento específico, carente de pesquisas necessárias para a sua fundamentação, dou a mim o direito de ainda permanecer adepta ao modelo de gênero biológico oficialmente estabelecido desde os primórdios da humanidade até o momento; lembrando mais uma vez para quem não sabe, que escolhas sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo gênero não entram nesse pacote.

1 comentário

Arquivado em Uncategorized

Reflexões sobre a polêmica do Padre Marcelo

pe_marcelo_rossi

Em Gestalt nós, psicólogos, aprendemos que o todo é diferente da soma das partes. Portanto, para uma boa compreensão do todo, transcrevo as declarações polêmicas do Padre Marcelo em entrevista à Rádio Globo:

“(…) ele é um médico NUTRÓLOGO. Qual a diferença? É a mesma coisa de um psiquiatra e um psicólogo. Qual a diferença entre o psiquiatra e o psicólogo? (…) o básico: Psiquiatra é MÉDICO. O psicólogo, ele é apenas um conselheiro, um terapeuta. Ok? Exemplo, eu sou um psicólogo. Por que? Em certo modo, como sacerdote da alma, ao mesmo tempo como sacerdote de almas também, porque o sacerdote é um médico de almas, na parte espiritual. (sic). Voltando, o nutrólogo, ele é um MÉDICO, tá, que se especializou na parte alimentar. Portanto ele é muito mais do que um nutricionista. É como o enfermeiro e o médico. Qual a diferença do enfermeiro? Quem opera? O médico. Então o médico tem (inaudível) os enfermeiros…”

No início causou-me admiração uma figura pública religiosa e formador de opiniões alimentando a onipotência profissional com impressões pouco fraternas, causando discórdias nas redes sociais. Como profissional obviamente me indignei. Mas como ovelha perdida do rebanho, com o compromisso moral de me deixar recolher ao redil, comecei aos poucos a refletir e enxergar a questão com outras percepções.

Não sabemos por quem ou de onde o padre recebeu as informações equivocadas sobre o trabalho  de psicólogos, nutricionistas e enfermeiros na entrevista que concedeu.  Mas quando divulgou estas informações foi notório que caiu de paraquedas num assunto delicado provavelmente por desconhecer a fragilidade do relacionamento entre alguns médicos e os demais profissionais de saúde. Sua opinião como personalidade pública colocou ainda mais em evidência essa fragilidade, visto os comentários polêmicos nas redes sociais. Muitos leigos nesse assunto não compreendem a seriedade das tais declarações, pois desconhecem nossa vida profissional por trás dos bastidores e as entraves de nossa atuação. Certamente nem ele, pois do contrário não manifestaria tal posição.

Vamos, pois,  dar a César o que é de César. Conselho é um parecer, uma opinião baseada nos valores e crenças do conselheiro. Não faz parte de nossas habilitações. Terapeuta é o profissional que aplica técnicas reconhecidas visando o equilíbrio da saúde e qualidade de vida de uma pessoa. É prática de várias profissões, incluindo a medicina. Psicólogo é o profissional que atua na prevenção, no psicodiagnóstico e na modificação das estruturas psíquicas através de diferentes abordagens teóricas; investiga os processos psíquicos dos transtornos emocionais e é o único habilitado a utilizar testes psicológicos como um dos instrumentos dessa investigação.  Psiquiatra, por sua vez, é o médico que aborda as causas orgânicas dos transtornos mentais, faz diagnóstico de doenças e é habilitado a prescrever medicamentos para os transtornos mentais.

São, portanto, papéis e posturas diferentes entre profissões. Nem maiores nem menores, e sim complementares. Nosso trabalho como profissionais de saúde é outro. Não somos, portanto, “conselheiros”. Não somos “menos especializados”. É diferente. Estudamos o mesmo tema com outras abordagens e de maneira mais especifica. O que para os médicos é uma especialização para nós é toda uma carreira com estudos aprofundados. Nosso compromisso é com o doente, e não com a doença. Isso nos difere. Nossa importância perante a medicina é como a dos padres perante bispos e arcebispos.  Nenhum é menos ou mais.

Assim sendo, nem médicos são deuses nem nós somos santos. Essa declaração sobre a posição dos profissionais de saúde e médicos, desinformativa, provavelmente não provém dele e sim de fontes tendenciosas que ele, como padre, naturalmente não conseguiria avaliar ou contestar.  Mas é compreensível.  Se um ateu falasse sobre o Espírito Santo também cometeria equívocos.

Porém, há muitos bons médicos que enxergam nosso trabalho com bastante respeito. Estes podem certamente não compreender de religião, mas seguramente compreendem a importância do trabalho da psicologia, da nutrição e da enfermagem. Desejo de coração que Deus envie ao padre profissionais sérios da medicina para que lhe tirem o véu do referido desconhecimento. O bom pastor como ele precisa conhecer bem suas ovelhas.

Que o padre Marcelo continue sempre contribuindo para a evolução espiritual do ser humano com seu papel midiático, seja como conselheiro, sacerdote de almas, escritor, mas como bom pastor que sempre foi, na busca de caminhos de vida mais gratificantes para seu rebanho com o objetivo de melhora e bem estar.

Quanto a nós, psicólogos, nutricionistas, enfermeiros, não precisamos nos justificar. Sabemos bem quem somos, o quanto estudamos e o bem que fazemos. Isso basta a nós e a nossos pacientes.

Afinal, como perpetuou o sábio Rei Salomão no livro de Eclesiastes: “Tudo é vaidade”.

 

M S – Psicóloga

 

2 Comentários

Arquivado em Uncategorized

ESSA DANADA RITALINA

img_criancas_espiritocritico_ritalina_charge

O mundo moderno é cheio de siglas. As crianças também. A sigla mais frequente, que superlota consultórios de psicologia e psiquiatria é: TDAH. Parece um novo “vírus”. O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, de acordo com a medicina, é um transtorno neurobiológico, associado a uma disfunção em áreas do córtex cerebral, conhecida como Lobo Pré-Frontal,  que se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. Ele é chamado às vezes de DDA (Distúrbio do Déficit de Atenção).

Geralmente é detectado quando a criança entra na escola. Agitada, não pára um instante. É o “terror” das professoras. Não consegue aprender, seu interesse é abraçar o mundo com as mãos e fazer dele o que bem quer. Aí pensamos: por que antes isso não existia? Será apenas desconhecimento deste transtorno? Vamos pensar.

Criança que é criança, desde que o mundo é mundo, brinca, briga, corre. Corre muito, agita-se, numa voracidade hoje muito diferente de alguns anos atrás.

Antes, o mundo era real, gigantesco, imenso. Não cabia diante dos olhos. Hoje, quando trocam o rolimã, as bolinhas de gude, as pipas, a amarelinha, a corda, pelo fascínio do mundo virtual, ele não é mais gigantesco, é reduzido a uma pequena tela. O mundo inteiro cabe dentro de um Iped, Ipod, I qualquer coisa. Hoje criança pequena tem seu tablet, ou qualquer outro apetrecho virtual. Quando não tem, os pais “emprestam”. A tecnologia ajuda muito. Mas às vezes o preço da modernidade é alto.

De uns anos para cá o ingresso nesse mundo virtual se faz de maneira precoce, bem antes do mundo real. Basta o pequeno perceber que encostando o dedo numa tela ou numa tecla, algo diferente acontece. Pronto. Esse mundo agora é dele.

Neste mundo virtual, em que ele é o rei, o bedel e também o juiz, não há leis. Sem leis, tudo pode. Ele manda, comanda, agride, regride, assusta, reage, e faz o seu final. Desafia e é desafiado. Desiste ou persiste sem cobranças. Na família, por sua vez,  ele é dono de seus brinquedos, comanda suas brincadeiras, e muitas vezes faz suas próprias leis. A maior parte do tempo, ou está no computador ou na TV.

E aí chega a hora de partir para um mundo gigantesco: a escola. Esse mundo fora das telas e fora do lar é assustador. Não se trata apenas de escola regular. É aula de natação, de ballet, de inglês, de judô, disso, daquilo. É mais desafiador do que os jogos virtuais, porque não está sob seu controle. Alguns percebem de imediato que é um mundo diferente, existem regras. Existem consequências, e procuram se adaptar. Outros querem fazer desse mundo a projeção do próprio mundo virtual, o SEU mundo, onde manda e desmanda. E é aí que mora o problema.

Eis agora um mundo novo, “off line”, que deve ser explorado, experimentado, sentido. Inquieta, exploradora, questionadora, ansiosa, procurando e extrapolando os próprios limites para enfrentar os desafios do mundo novo, a própria criança torna-se um desafio para esse mundo. Os professores não dão conta. A própria família não dá conta. É quando se descobrem as dificuldades, deficiências e transtornos.

A criança terrível aparece então conduzida pelos pais dentro de um consultório de psiquiatria ou neurologia. Diagnóstico: TDAH. O remédio? Ritalina: para muitos, “a droga da obediência”. Existem crianças que iniciam o tratamento aos quatro, cinco anos. Quanto a isso,  há controvérsias por parte dos próprios médicos.

Já chegaram a cogitar ser uma doença fictícia. Concuiu-se que hiperatividade existe, mas muitas vezes aparece como um sintoma, não como a doença em si. É esta a questão.Nos inúmeros artigos que li, inclusive de médicos,  o perigo é a medicalização exagerada. A tarja preta para crianças só auxilia quem realmente tem a doença. Adriano Predeus, psiquiatra coordenador do Ambulatório de Psiquiatria da Infância e Adolescência da FMBAC afirma: “Só quem, de fato, tem TDAH se torna mais calmo e menos agitado ao consumir o metilfenidato.” Portanto, é fato que diagnosticar TDAH precocemente, sem uma boa avaliação, é perigoso. É diferente a hiperatividade como sintoma, traduzindo-se como uma grande inquietude, e como doença. Pode-se cometer o erro de tratar uma gripe como pneumonia.

O diagnóstico médico e a avaliação psicológica, com os testes específicos, poderão sugerir o TDAH como transtorno, passível de medicamentos. Porém, tais avaliações poderão acusar simplesmente uma criança inquieta, arteira, cujos sintomas disruptivos podem indicar questões psicológicas envolvidas bem como a necessidade de um espaço maior para si mesma. O remédio mais eficaz para a hiperatividade enquanto sintoma, portanto,  é a “tarja branca”: correr, brincar, num espaço livre, liberar a energia condensada nas telas virtuais. E certamente um remédio chamado “limites” que só o mundo real pode dar. Mas às vezes funciona em doses homeopáticas. Lentamente. Persistentemente. Mas não tem contra indicações nem efeitos adversos.

Como terapêutica mais ampla, é necessária uma transformação na vida e educação. Nas famílias, mais passeios, contato com a natureza, persistência nos limites. No ensino, talvez uma pitada de Waldorf, Montessori, escola experimental e outras que cuidam da educação integral. Difícil? Sim. Mas perfeitamente viável. Só assim é possível romper de vez o relacionamento sério com a danada Ritalina.

1 comentário

Arquivado em Uncategorized

BULLYING E A TURMA DA MÔNICA

Quando eu era criança, fui por várias vezes chamada de “Mônica”. Não por alguma qualidade da personagem de Maurício de Souza, mas por sua característica peculiar que a fazia ficar irritada: os dentes. Aliás, se Mauricio de Souza estivesse começando hoje criar seus personagens estaria sujeito às críticas da modernidade que personificam e  se atrevem a justificar comportamentos de outros tempos: o modismo chamado “bullying”.

Afinal, a partir de suas histórias, além  das dentuças, baixinhas e gorduchas, os alvos também eram crianças que não gostavam de tomar banho, chamados de “Cascão”, gulosos associados à “Magali” ou portadores de dislalias taxados de “Cebolinha”.

Cresci como Mônica. E sobrevivi sem precisar resolver esta questão em terapia. Nem sequer me dei ao trabalho de usar aparelho dentário. Assim como eu, muitas crianças da minha época, década de 70, cresceram sobrevivendo bravamente aos apelidos e gozações. E por que as crianças de hoje em dia são suscetíveis a estas provocações, lhes causando tantos “traumas”?

Vejamos o lado da psicologia.
Nem toda criança que vive situações dolorosas torna-se infeliz. Muitas vezes crianças que passaram por sofrimentos aparentemente menores parecem psicologicamente mais desajustadas que outras, que padeceram de grandes sofrimentos. Mark Baker explica esta questão através da diferença entre dano psicológico e trauma psicológico. O dano psicológico acontece com todos nós, é o que sofremos quando somos atingidos emocionalmente nas circunstâncias cruéis, agredidos, magoados. Quando há apoio, este dano psicológico é bem elaborado e conduz a um crescimento. Quando ninguém está presente para dar o apoio necessário, os danos psicológicos podem evoluir para traumas psicológicos, que deixam a sensação de fraqueza, incompetência, perseguição. “Ter uma pessoa receptiva à nossa dor faz toda diferença do mundo”. Dar o apoio necessário significa basicamente entender a dor do outro.”

Conseguir elaborar um dano psicológico faz crescer. E este dano só evolui para trauma quando o sofrimento não recebe o devido apoio. O trauma psicológico em si, sem passar pelo dano psicológico, geralmente é desencadeado por acontecimentos considerados pela criança, adolescente ou adulto como “catastrófico” como: perda ou dano físico de algum ente muito querido, abuso sexual, violências ou ameaças, acidentes com vítimas, terremotos, guerra, erupções vulcânicas, incêndios. Aparentemente algumas formas de bullying não estariam enquadradas neste sinistro quadro, porque de verdade não são bullying.

O bullying existe sim. Mas é uma coisa muito mais séria do que apelidos, fofocas ou alguns tipos de brincadeiras de mau gosto praticadas por uma ou mais crianças ou adolescentes. Termo da língua inglesa traduzida por “valentão”, é uma forma de violência verbal  ou agressão física e/ou sexual:  ameaças à integridade, abuso de autoridade, ataques verbais, físicos ou sexuais repetidos, geralmente acompanhados de ameaças, chantagens ou intimidações. Venhamos e convenhamos que isso, sim chega à beira do catastrófico.

O verdadeiro bullying não gera simplesmente problemas de relacionamento e autoestima; mas coisas mais sérias associadas como: isolamento, uma série de distúrbios como depressão, comportamentos obsessivos compulsivos, fobias, transtornos de pânico, até suicídios. Deve ser tratado não somente com psicoterapia, mas também com medicamentos.

Assim como nem todo bullying é bullying, nem todo trauma é trauma. Claro que não se deve deixar de lado a importância disso, mas  apelidos, fofocas, gozações e exclusão de colegas, embora sejam danosos,  os considerar como bullying é no mínimo perigoso. É generalizar, personificar e consequentemente deixar de tratar adequadamente as verdadeiras raízes de determinadas questões psicológicas que daí, podem sim tornar-se sérias na fase adulta. Isso porque, se a criança sofre “bullying”, o foco é o agressor, ou autor da brincadeira maldosa. Ele é o problemático, então eliminando e tratando o agressor ou agressores o problema está resolvido. A criança“bullynizada” é encaminhada para a terapia, onde ao invés de ser tratada  a dificuldade de relacionamento, os problemas de autoestima, ou mesmo conflitos mais sérios, é tratada como vítima de “trauma” provocada por um colega ou por colegas. O resultado são reportagens como essa: “Estudante confessa assassinato do colega e diz que sofria de bullying”.

Enquanto vejo muitas pessoas se queixando de que  o médico trata diversos tipos de doenças como “virose”, com alguns comportamentos de crianças ou adolescentes vítimas do que  consideram “bullying” fazem a mesma coisa: generalizam e preocupam-se com os sintomas mas esquecem a causa que o desencadeia.  O antitérmico da alma é receitado, mas o antibiótico psíquico é deixado de lado. Esse é o diferencial para que crianças e adolescentes cresçam psicologicamente saudáveis: preparar-se para a enxurrada de revezes da vida moderna, os problemas de relacionamento que se estabelecem desde a infância, aprendendo a reagir adequadamente na iminência de brincadeiras de mau gosto, apelido, provocações ou exclusões que, longe de bullying, constituem-se em grande falta de respeito ao próximo e devem advertidos e tratados na devida proporção. A solução é separar o joio do trigo, e dar ao “agressor” e à “vítima” a atenção e terapêutica psíquica proporcional e correta à situação para que possam fazer como a baixinha, gorducha e dentuça Mônica: aos planos “infalíveis” armados por Cebolinha com a ajuda de seu fiel amigo Cascão, simplesmente usar como arma de defesa aos ofensores um coelhinho de pelúcia encardido e voltar a saborear os prazeres da infância e das brincadeiras com os amigos crescendo psicologicamente saudável.

 

Marister Salmoria

Deixe um comentário

Arquivado em Uncategorized

CONVERSA PRA BOI DORMIR

boi_dormir

Anos  atrás caiu-me às mãos um texto criticando duramente o conteúdo das antigas cantigas de ninar, algumas com teor nada salutar à imaginação infantil. Absorta na leitura, percebi sensação deveras familiar. Vasculhei então minuciosamente o relicário de quinquilharias mentais e retomei os primórdios de infância. Embotadas de pó e lembranças, assomaram à minha mente as tais cantigas. Enrodilhada em devaneio, materializou-se mentalmente a doce figura de minha mãe, olhos brejeiros, cabeleira louro venesiano, tez macia, face nacarada, manso colóquio.   Suas canções de ninar me adormeciam vagarosamente, numa singela e envolvente seresta de idílios. Cantarolava no geral temáticas que falavam de anjos, mamães e bebês. Recordo-me, porém, de uma em especial, citada em primazia no referido texto, uma espécie de “hit” das crianças de todos os tempos, cujo teor contrastava substanciosamente com a doçura que a melodia embalava. Tratava o enredo de um conhecido personagem de diferentes e progressivas gerações, que aterrorizava e quebrava o encanto das ingênuas cantigas. Ele aparecia quando escutava, embalada pelo aconchego maternal, a desestimulante letra da cantoria:

“Boi, boi, boi, boi da cara preta/ Pega essa criança que tem medo de careta/ Não, não, não, eu não vou pegar/ pois essa menina bem quietinha vai ficar”.

E lá ficava eu, inerte no regaço materno, em minha inocência pueril atemorizada com o infeliz bovino, que por muitas vezes insistia em povoar minha fértil imaginação, coisa que nem sequer o atrevido Tutu Marambá ousava fazer. Aos três anos, ainda pensando concretamente, vislumbrava uma cena em que, enquanto estava eu deitada na cama, despontava iluminada, em meio à penumbra do quarto, uma gigantesca cabeça de boi, negra como tição, longos chifres, à espreita de um menor movimento, choro ou lamúria, para abarrotar minha tranqüilidade. Fui crescendo sob a ameaça deste maldito espectro atento a meus lamentos. Ante todas as situações, tentava “engolir o choro”, independente de cobranças familiares. O dantesco boi era meu autêntico repressor. E com ele no meu rastro cresci.

Posteriormente tomei conhecimento de um remoto e curioso caso de Sigmund Freud a respeito de um pequenino paciente de nome Hans cujos desafetos não eram bois, porém, cavalos. Concluiu Dr. Sigmund que a origem do medo de seu paciente fora a angústia relacionada ao pai, deslocada para o receio dos pobres eqüinos. O inofensivo animal fora eleito como objeto de temor em virtude das brincadeiras de pai e filho durante a infância do menino.

Pensei então no meu boi da cara preta. Inferi que, qual os cavalos do pequeno Hans, ele me acompanhou durante muitos momentos da minha existência, do adormecer ao despertar, e até hoje permanece sorrateiramente em meu encalço. Alheio a psicologismos, o abjeto animal reaparece sem pedir licença, desloca-se sutilmente para meu mundo atual e camufla-se qual um camaleão na extensa amplitude do universo de meus anseios, sugerindo um predador antropomórfico aguardando a caça. Descubro que nem minha vasta experiência de vida o afugenta de meus pensamentos. Apesar da capacidade de abstração, ainda perduram minhas arcaicas fantasias permeadas de elementos concretos. Apenas não o reconheço na atual conjuntura como o mamífero ruminante, o macho castrado da espécie Bos taurus de minhas inquietantes simbologias de outrora. Num processo de verdadeira metamorfose psíquica, o anímico boi mudou de cara, de cor, de nome e de espécie. Atualmente se chama Homo sapiens.

Deixe um comentário

Arquivado em Uncategorized